segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Carta de amor a Telma Scherer

Não estou apenas aproveitando o ensejo desta polêmica provinciana que aconteceu com a escritora que teve o seu direito de manifestar sua arte em praça pública arrancado à força. http://www.youtube.com/watch?v=C20SQnXgMr8

Estou exercitando algo que um dia alguém muito importante na vida de minha família sugeriu que tentássemos fazer quando há a necessidade de perdoar alguém que amamos. Escrever uma carta de amor.

Não tenho mágoa alguma relacionada à Telma, pelo contrário. Não tivemos uma convivência exatamente larga para qualquer atrito. Mas, sim, o amor existe, pois nos tornamos amigas. Amigas de encontros mais ou menos raros – nós duas andamos muito ocupadas ultimamente. De poucas cartas, mas muitas mensagens telepáticas.

Talvez eu é que tenha que me perdoar de uma certa “inveja do bem” que sempre senti ao vê-la realizar seu trabalho, sua poesia a plenos pulmões, enquanto eu, em diversos aspectos da minha vida pessoal e profissional ainda me esconda sob os escombros que a vida burocrática exige.

Horas antes de realizar sua performance, pensava em inventar uma doença para ver a escritora na praça dizendo “Não alimente o Escritor”. Meu namorado que é amigo e colega de profissão de Telma esteve na praça, mas saiu antes de vê-la sendo detida. Só soube o que aconteceu tarde da noite, ao chegar em casa após o trabalho e entrar na internet.

Naquela noite em que eu estava na casa de minha mãe, o telefonema dele na madrugada me avisando sobre o ocorrido me tirou o sono. Me fez sentir muita raiva. Aflorou a dor de um universo que me cerca em várias direções.

Como Telma, também escrevo; porém, muito menos do que gostaria. Tenho várias desculpas socialmente aceitáveis para isto, mas isto aqui não vem ao caso. A não ser pelo fato de que sei como é mágico e também dorido sentir demais o mundo. Às vezes, só a escrita alivia o que nem xamã, psicólogo ou exorcista estariam habilitados.

Esta repressão que a poeta sofreu só me reforçou o nojo que tenho pela polícia. Perdi meu pai de forma brutal. Em um assalto à mão armada no seu local de trabalho. A polícia só prendeu um dos assaltantes na ocasião de outro assalto, em outro lugar, um ano depois, na “sorte” de um flagrante.

A polícia foi omissa, tinha meios de ir atrás do acusado que já era reincidente e nem estava se escondendo. Continuava no seu ofício e minha irmã o viu passar pela frente de nossa casa mais de uma vez, avisar a polícia ... e nada. Nossa família viveu em tensão durante muito tempo até o reconhecimento do criminoso e sua prisão. Agora ele está solto por bom comportamento.

A polícia não fez o seu trabalho tão bem feito como na Feira do Livro. Ali eles foram exemplares. Detiveram a criminosa em flagrante, com sua arma na mão. Sua palavra.

Não tenho como perdoar os assassinos de meu pai. Não consigo perdoar a polícia corrupta e a justiça lenta deste país. O tempo só ajuda a conviver com os fatos. Mas, poderia escrever uma carta de amor a meu pai, porque preciso perdoar a sua perda e o buraco que nunca vai ser preenchido. Mas, agora, só consigo pensar no que minha amiga passou e na necessidade de escrever-lhe uma carta de amor.

Comecei a escrever esta carta atrás de um daqueles papéis que os restaurantes de shoppings (eu trabalho em um) usam como veículo de publicidade e toalha de mesa. Estou finalizando-a aqui, posteriormente, pois, em dado momento, meu prato chegou e eu devia almoçar e voltar para minha vida de funcionária assim que engolisse a comida e acabasse meu intervalo.



                                                Carta de amor a Telma Scherer

Querida amiga

Gostaria que fôssemos mais amigas ainda. Pessoas com tua coragem e tua luz fizeram falta na minha vida. Só há pouco tempo – depois de me conhecer um pouquito – percebi o encontro com anjos da tua espécie.


Queria ter chutado o meu próprio balde naquela sexta-feira . Mandado o emprego que me paga algumas contas às favas naquele dia e simplesmente curtir a Feira. Comprar uns livros baratos e raros nos balaios. Cruzar contigo acorrentada a uma casinha de cachorro e parar para te assistir.


Queria estar na praça, Telma. Queria ver a escritora abrir as veias e mostrar a cor do sangue ao público. Queria cuspir na cara de um militar, porque, palavra – eu não ia conseguir vê-los te arrancar dali sem lembrar a omissão da polícia para com os crimes de verdade. Queria ter sido presa por desacato, perturbação da ordem, resistência (não foram estas as palavras?) Só para poder estar mais perto desta dor e ser solidária mais de perto.

Queria,
participar
daquele grito triste
me contaminar
do veneno que desalinha
as arestas de meu
imenso cubo de gelo


ser tocada de perto
por aquele calor
que derrete o medo
de se ver ao avesso


( o lado de verdade)
as palavras jorrando
entranhas abaixo, 
                          mulherzinha.

Eu sei, Telma, é inútil trançar com palavras.


Mas, eu desço do salto toda vez que morro. E agora, enquanto te escrevo, eu também lembro das vezes que eu estive viva, te assistindo nascer e morrer.


Defendeste meu poema sem saber que era meu no júri de um concurso literário – nossa, fiquei tão honrada com tal, moça. Vê-la declamando “todo verme, todo germe” em meio às prateleiras de livros empoeirados me encheu de inveja e amor. Inveja da boa, eu sei que sabes que existe e que sentes também. Talvez até de mim. Seria uma honra.

Sei que este momento difícil será inutensílio para mais poesia, querida. Mais vida e morte. Esse negócio, enfim no qual a gente é viciado e não quer escapar.




Um abraço atrasado de quem queria ter estado junto, mas escolheu não poder ir.

Um abraço apertado na próxima vez que nos vermos, acompanhados de chá de alecrim e um caleidoscópio confeccionado por nós para viajarmos por horas e horas e horas.


O mundo é podre, mas a gente vê paisagem em tudo.



Beijo no coração, com muito amor.



Andréia Laimer

Um comentário:

  1. Estou emocionadíssima com teu texto. Te abraço de longe, onde agora me recupero do choque lendo palavras de amor que gotejam, uma a uma, coloridas, irrepetíveis, caleidoscópicas e multiliterárias. Muito obrigada.

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